Artigo: "A literatura marginal-periférica é uma forma de assegurar o direito humano à imaginação e à nossa subjetividade."

"A literatura marginal-periférica é uma forma de assegurar o direito humano à imaginação e à nossa subjetividade."

De acordo com levantamento do Atlas das Juventudes em parceria com a FGV, quase metade de jovens brasileires (47%) que têm entre 15 e 29 anos desejam sair do país em busca de melhores condições de vida e trabalho. Esse dado quando cruzado com políticas governamentais recentes, como a reforma trabalhista através da MP 1.045/21 que dilui direitos de jovens antes assegurados por meio de programas como o Jovem Aprendiz, nos traz pistas do porquê dessa vontade das juventudes em deixar o Brasil.

Eu sou uma jovem de 22 anos, nascida e crescida no extremo leste de São Paulo. Estudei a maior parte da vida em escolas públicas estaduais na região onde cresci e ao pensar sobre a situação atual das juventudes brasileiras, me recordo da minha própria relação com meu bairro. Meu bairro ou para es intimes “quebrada” se chama Recanto Verde Sol. É provável que você nunca tenha ouvido falar dele: fica ali, entre Itaquera, um pouco depois de São Mateus (mas é antes de chegar ate Cidade Tiradentes). No distrito do Iguatemi, que carrega em si indicadores pouco motivadores, como a pior taxa de emprego formal da cidade.

Uma foto de Mídria Pereira na Pinacoteca de São Paulo
Midria, poeta, slammaster do Slam USPerifa, estudante de Ciências Sociais na USP e Jovem Transformadora Ashoka. Foto: Levi Fanan na Pinacoteca de SP

Antes mesmo de pensar em trabalhar, eu já tinha uma relação de mais descontentamento do que amor pela minha quebrada. Me recordo de ter a sensação inerente de que tudo ao meu redor era sinônimo de atraso: ruas pouco pavimentadas, escolas com pouca estrutura, saúde pouco eficiente, nenhum acesso à equipamentos de cultura e a distância de horas do centro da cidade. A palavra que definia minha visão sobre meu bairro era falta. Mais de uma vez perguntei para minha mãe quando ela poderia finalmente nos tirar dali, mudarmos para um apartamento em uma região mais próxima do centro, quem sabe.

A sorte foi que minha mãe não o fez. Ao invés de apartamento financiado, preferiu investir em bater uma laje em cima da casa da minha vó. E agora entra a anedota que quero compartilhar com vocês: a laje da minha mãe, que tem uma das vistas panorâmicas mais bonitas que o mundo já viu, é uma boa metáfora para como investimento faz toda diferença na hora de valorarmos nossos territórios.

Lá para os 15, 16 anos comecei a participar de um sarau de quebrada, desses que acontecem em bares como tradicionalmente se convencionou nas periferias Brasil afora. No caso, esse era o Sarau do Vale. Lembram que até então minha perspectiva sobre a quebrada era a de falta? Quando passei a frequentar o evento cultural mensal, organizado de maneira autônoma por moradores e articuladores culturais do bairro no Bar do Zé Costa, substitui falta por potência no meu vocabulário. O sarau acontecia lá em cima do morro, no ponto final das peruas 3739-10 vindo do Metrô Itaquera, com uma vista estonteante que nos dias de céu mais límpido alcança até o Pico do Jaraguá e as antenas de rádio da Avenida Paulista.

Eu que sempre fui dedicada à escola e já gostava um bocado de ler e escrever, fui perceber no sarau algo ainda mais maravilhoso: um lugar de expressão pública e política do que me atravessava. Na adolescência, questões raciais como a transição capilar e imposições para performatividade de gênero me deixavam com vontade de gritar com o mundo. O sarau me trouxe um caminho bonito de descoberta da minha voz de maneira coletiva, ao ser ouvida entre a minha comunidade e compreender que o que eu dizia ali era valorado, visto como importante.

Antes do sarau, eu já participava de projetos literários, como os Círculos de Leitura e sempre vi nos livros uma forma de aprimorar meu entendimento sobre a realidade social. Saber interpretar textos é também saber interpretar o mundo, certo? Esse grande livro que vivemos conjuntamente. Mas o que estar no Sarau do Vale complementou à minha experiência de leitora foi o lugar de percepção também como poeta, escritora e narradora da minha própria trajetória. No fim das contas, foi recitando poemas que eu me entendi como sujeita, que não apenas interpreta, como também influi no mundo co-criando a vida de maneira propositiva.

Uma foto de Mídria Pereira
Midria é é poeta e vai escrever mensalmente aqui sobre Juventudes. Foto: Acervo Pessoal

Essa experiência do sarau me faz refletir sobre como a literatura, especialmente a literatura marginal-periférica é uma forma de assegurar o direito humano à imaginação e à nossa subjetividade. Nos saraus e slams de maneira coletiva o que acessamos são as potências que nos negaram por tanto tempo, criando zonas autônomas em que a economia material e simbólica ganha novos contornos. São nesses eventos que a periferia se torna o centro e não apenas eu, mas milhares de jovens percebem que sua vozes são necessárias para construção de uma cultura realmente democrática, além de outros mundos e futuros possíveis.

Para citar alguns bons exemplos, Rodrigo Ciríaco organiza há alguns anos a coletânea “Pode Pá Que é Nóis Que Tá” incentivando adolescentes a escreverem por meio de concursos literários. Experiências escolares de slam também não faltam e o Slam Interescolar que já chega a ter uma competição a nível nacional, junto com o Slam Colegial da FLUP são ótimos exemplos de como jovens têm muito que dizer, basta ter quem se disponha a ouvir.

Voltando ao início para que tudo faça um pouco mais de sentido, se hoje tantes jovens desejam sair do país em busca de um futuro mais promissor, talvez a razão se explique junto dessa falta de perspectivas sobre o quanto nossas vozes são valorosas aqui mesmo, no Brasil, nas nossas quebradas e territórios de origem. Falar de voz é simbolicamente se referir a todo o poder de ação que reside em cada ume de nós, na potencialidade transformadora que podemos aplicar no mundo quando existem oportunidades.

Sendo assim, eu te convido: vamos continuar conversando sobre as múltiplas potências e demandas das juventudes por aqui? Ainda tenho muito para te contar, nem deu tempo de falar sobre slams e como na USP uma competição de poesia se tornou uma forma de aquilombamento. Aprendi com o Sarau do Vale! Mês que vem te conto mais.

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