Artigo: A pluriversalidade como princípio dos debates acerca de juventudes

A pluriversalidade como princípio dos debates acerca de juventudes

Há algum tempo me aproximando dos debates sobre decolonialidade da vida e dos saberes, tenho tido reflexões profundas sobre a forma de me enxergar no mundo. Muitas delas começaram com um mergulho nas questões levantadas pelo afrofuturismo, movimento que ganhou bastante relevância nos últimos anos, especialmente entre a juventude negra. E que nos ajuda a recriar imaginários possíveis sobre a existência de pessoas negras no presente e no futuro, muitas vezes bebendo dos conhecimentos e legados de sociedades negras no passado. Dentre as diversas perspectivas trazidas pelo campo de estudo do afrofuturismo, uma das que mais me cativou nos últimos tempos foi a da pluriversalidade. 

Ideia do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, que contrapõe o que já conhecemos comumente como princípio norteador da construção do mundo hoje: a tão velha, porém nem não boa universalidade. Universalidade que costuma associar os modos de vida de padrão europeu, capitalista, cristão, branco, masculino, cisgênero e hétero como a norma. Ao mesmo tempo em que marginalizando e violentando pessoas e grupos que fujam a essa norma. O que a pluriversalidade propõe é entender justamente que existem outras maneiras de vida que fogem a essa norma e merecem respeito e consideração em sua integridade. 

Estudando antropologia na faculdade, uma das discussões que mais me encanta é a da aproximação necessária para compreender as questões culturais que estudamos quando elas dizem respeito a outros grupos sociais dos quais não fazemos parte, junto de um movimento de estranhamento de quem nós mesmes somos. Perceber que tudo que vivemos coletivamente é cultura e assumir o fato de que enxergamos o universo ao nosso redor partindo de uma perspectiva informada pelos padrões culturais de nossa comunidade de origem. Jamais de uma maneira imparcial. 

Três jovens em uma floresta

Esse que já é um exercício desafiador se torna ainda mais dificultoso em uma cultura como a ocidental globalizada que conhecemos hoje, com raízes no capitalismo que de modo predatório destrói outras formas de vida. Um único modelo de construção da vida é visto como ideal: nascer, ir à escola – com um currículo que em resumo reproduz o modo de vida capitalista, ir à faculdade, conseguir um emprego, consumir, se aposentar (se der) e morrer. A cada passo nos tornando mais consumidores do que cidadãos. No meio desse curso do mundo cada vez menos democrático e permeado de desigualdades, qual o espaço disponível para as juventudes sonharem? 

Para as pessoas atentas, uso juventudes no plural desde o início desta coluna. Como uma forma de iniciar o debate sobre a pluriversalidade e compreender que as questões que permeiam jovens na contemporaneidade não podem ser resumidas em algumas páginas, muito menos por uma única pessoa. O que escrevo aqui são recortes do que me atravessa com mais urgência, como jovem negra, universitária, nascida e crescida em um contexto urbano e que embora enérgica defensora da pluriversalidade como princípio suleador para construção de novas relações sociais, se vê muito mais próxima da reprodução da universalidade. 

Mas por que todo esse papo de universalidade e pluriversalidade? Será que estou sendo compreensível? Para ficar melhor darei exemplos. A universalidade institui um único modo de vida como idealmente possível e normalmente se institui a partir do epistemicídio, a morte de outras formas de conceber a vida. Não é novidade que o agronegócio, a cargo de exemplo, tem se alastrado pelo centro-oeste e norte do Brasil criando conflitos intensos, especialmente contra populações indígenas e quilombolas, atacando a autonomia que essas populações têm sobre suas terras que necessariamente sustentam seu modo de vida.  

Uma ativista chamada Angela Mendes, filha do também ativista Chico Mendes percebeu no estado do Acre a constante de desvalorização do modo tradicional de vida da população seringueira e a investida cultural que se coloca sobre as juventudes desse contexto. Jovens nascidos em reservas extrativistas têm uma influência muito maior para buscarem um padrão de vida “sertanejo”, com referência na figura do cowboy que é dono de um pedaço de terra e cria gado. Um processo de perda de identidade regional, em detrimento de uma homogeneidade imposta no âmbito de uma cultura dominante e que corrobora com o desmatamento e a destruição da floresta amazônica. 

Em seu projeto Jovens Protagonistas da Reserva Extrativista Chico Mendes, Angela busca justamente valorizar a identidade de jovens de seu território, evidenciando que para proteger a floresta é essencial criar um senso de pertencimento entre habitantes e futures – já – guardiães. 

Recentemente em Manaus tive a oportunidade de escutar as histórias e pensamentos de jovens da Amazônia, pensando sua potência transformadora no território em que vivem. Jovens como aquelus que habitam a RESEX Chico Mendes e que querem ter acessos e direitos assegurados. Para que isso aconteça, além de escutar suas demandas, um primeiro passo que sugiro a quem quer que se interesse em acompanhar jovens em suas jornadas de descobrimento e transformação do mundo, é adotar a pluriversalidade como princípio. Entendendo que jovens de quebradas como eu, jovens amazonenses - que podem ser ribeirinhos, indígenas, quilombolas, da cidade ou da floresta – e tantes outres, somos múltiples e precisamos de espaço. Tanto para preservar nossas culturas, quanto para cocriá-las, não a partir de um modo de vida dominante, mas sim a partir de nossos próprios sonhos de futuros outros. 

Você já parou para escutar sonhos de algum jovem hoje? 

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