Artigo: “Que direito você tem?”

Um dia, passeando pelo Twitter, me deparei com uma thread do pesquisador Marcos Queiroz, que mostrava um trecho do documentário “Raça Humana: bastidores das cotas raciais na UNB”. O vídeo, de 2009,  mostra o lançamento do livro “Gota de Sangue - uma história do pensamento racial”, de Demétrio Magnoli, que fala sobre a necessidade de desinvenção do mito da raça. Ao decorrer do vídeo, que tem um pouco mais de dois minutos, vemos apenas pessoas brancas debatendo e deslegitimando a implementação das cotas raciais na UNB (Universidade de Brasília), até que o geógrafo Joel da Silveira, que estava na plateia, levanta, acompanhado de militantes do MNU (Movimento Negro Unificado) e contesta aquelas “pessoas de bem”. Infelizmente, como é comum, Joel é descredibilizado e até mesmo vaiado por aqueles que acreditam que detêm de todo o saber. Em certo momento, ele vira para um dos palestrantes e fala: “Que direito você tem?”.  

No artigo 5º da Constituição Federal temos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 

Esse trecho expõe alguns dos nossos direitos. Somos todos iguais perante a lei. Desde que você não seja preto, desde que você não more na favela, desde que você não seja mulher. Os “iguais” são brancos, são homens, são cis

Um homem segurando uma placa escrito Black Lives Matter
Foto: cottonbro no Pexels

Longe de mim querer desvalorizar a política ou as leis. Foram elas que possibilitaram a mim e aos meus irmãos chegarem em algum lugar, mas eu proponho aqui uma reflexão mais profunda. Eu quero falar sobre a necessidade de se manter “atento e forte”, como canta Gal Costa, quando falamos sobre direitos, porque eles são frágeis, assim como as democracias, e podem ser perdidos. E nem precisa ir longe e achar que isso só ocorre em governos ditatoriais. A perda de direitos é diária, é sorrateira, é silenciosa e, muitas vezes, dentro da lei. Quando você vê, parece que está em uma distopia que poderia ser até uma série de algum streaming famoso por aí. 

Ao olhar a situação do Brasil neste um ano e meio de pandemia é fácil perceber que não estamos todos no mesmo barco. Segundo dados de setembro de 2021 do Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo, negros morrem quase duas vezes mais que brancos de COVID-19. Ué? Mas a vida não é um direito? Então por quê às vezes parece que a morte tem cor? Porque aqui ela se vestiu de privilégio para alguns. Alguns que não conseguiram parar de trabalhar, alguns que não tinham água para lavar as mãos, medida básica de combate à pandemia, alguns, muitos, que simplesmente não tiveram nem a chance de colocar o colete salva-vidas.  

A fome também tem cor e gênero no Brasil. São 19 milhões de pessoas em situação de fome, segundo a Rede Penssan, em pesquisa divulgada em abril deste ano. Em 11% das casas chefiadas por mulheres, os moradores estão passando fome, contra 7% das casas chefiadas por homens. A fome está em 10% dos domicílios habitados por pessoas pretas, contra 7,5% dos habitados por pessoas brancas. Aqui, a igualdade é que ganha contornos de privilégio e o que nos resta são as imagens na capa do jornal denunciando a indignidade humana.

Imagens de um protesto
Foto: Life Matters no Pexels

Os números de mortes causadas pela polícia também mostram, como diz Emicida, que existe pele alva e pele alvo. 78% das pessoas mortas por policiais são negras, segundo levantamento apresentado em abril de 2021 feito pelo portal G1 em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Núcleo de Estudos da Violência da USP. Esse número ainda pode ser maior, porque a pesquisa relata que 1/3 dos homicídios não têm a raça definida. A polícia não indica a cor porque também existe um apagamento da consciência racial no nosso país. “Se não se fala sobre, não existe”: essa é a máxima no Brasil. Nem o direito de dizer que a cor é privilégio nos é dado. 

Eu proponho um jogo: escreva todos os direitos básicos que você lembra e risque aqueles que já foram violados. Provavelmente sobraram poucos. Direitos são o resultado de lutas, de atritos e incômodos dos nossos ancestrais. Por isso eu honro o MNU, honro o Joel e muitos outros que gritaram na cara da justiça que teimava em ser cega. Precisamos seguir nos incomodando, nos questionando, nos aquilombando e criando estratégias para romper com a ordem. Que direito você tem? 

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